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A pandemia da COVID-19 levou a um progresso real no compartilhamento de dados cient¨ªficos. Contudo, ainda h¨¢ um longo caminho a percorrer antes que a ci¨ºncia aberta efetivamente inclua o acesso irrestrito a publica??es cient¨ªficas, dados e pesquisas colaborativas. Embora a ideia de um bem comum venha ganhando espa?o, principalmente entre a gera??o de pesquisadores mais jovens, a mercantiliza??o do conhecimento cient¨ªfico continua a ser a regra. Quando consideramos essas quest?es, o que est¨¢ em jogo ¨¦ a rela??o como um todo entre os cidad?os e a ci¨ºncia..

Ch¨¦rifa Boukacem-Zeghmouri

, Fran?a.

A pandemia da COVID-19 nos permitiu observar um grande aumento na colabora??o e no compartilhamento de conhecimento cient¨ªfico entre pesquisadores no esfor?o para enfrentar o v¨ªrus, oferecer os tratamentos mais adequados e, especialmente, encontrar uma vacina para a doen?a. Tivemos a oportunidade de observar as barreiras ca¨ªrem quando os principais grupos editoriais especializados em conte¨²do cient¨ªfico ¨C como Elsevier, Springer Nature e Wiley ¨C franquearam o acesso a milhares de artigos de pesquisa. Isso permitiu que cientistas de todo o mundo pudessem l¨º-los, acompanhar os avan?os das pesquisas e, assim, acelerar seu trabalho.

Dados e metadados ¨C dados que descrevem outros dados ¨C tamb¨¦m foram abertos e compartilhados entre grupos de cientistas. Durante um certo per¨ªodo, o conhecimento cient¨ªfico, um bem comum, escapou das velhas e consagradas formas de apropria??o comercial que n?o favorecem a difus?o do conhecimento cient¨ªfico.

Esse fato reiniciou as discuss?es a favor de uma ci¨ºncia aberta. Se a necessidade de abertura ¨¦ sentida com tanta for?a atualmente, ¨¦ porque a ci¨ºncia, quando se trata da publica??o de seus resultados, tornou-se parcialmente inacess¨ªvel. Al¨¦m de ser muito dispendiosa para os pesquisadores que a produzem, ela ¨¦ tamb¨¦m demasiadamente cara para muitas das bibliotecas que teriam interesse em assinar e receber publica??es reconhecidas. 

A mercantiliza??o do conhecimento cient¨ªfico

Uma an¨¢lise das condi??es hist¨®ricas que levaram ao surgimento de movimentos em favor da ci¨ºncia aberta nos mostra que esse ¡°fechamento¡± est¨¢ profundamente enraizado na longa marcha rumo ¨¤ mercantiliza??o do conhecimento cient¨ªfico. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o conhecimento cient¨ªfico tem sido um mercado altamente rent¨¢vel ¨C movimentando bilh?es de euros a cada ano para seus principais atores, as editoras cient¨ªficas.

Assim sendo, em sua configura??o atual, as demandas pela abertura da ci¨ºncia est?o mais alinhadas ¨¤s justificativas comerciais e gerenciais, que desde a d¨¦cada de 1950 estruturam a organiza??o da ci¨ºncia, do que a uma den¨²ncia da l¨®gica totalit¨¢ria que provocou a Segunda Guerra Mundial. 

No entanto, tamb¨¦m est?o relacionadas a afirma??es anteriores do soci¨®logo norte-americano Robert K. Merton [1910-2003] e do fil¨®sofo da ci¨ºncia brit?nico, nascido na ?ustria, Karl Popper [1902-1994], que denunciaram esses monop¨®lios como novas formas de totalitarismo comercial que se apropriaram de um bem comum, o conhecimento cient¨ªfico ¨C criado e produzido com a ajuda de atores p¨²blicos e de fundos p¨²blicos.  

Acessibilidade, compartilhamento, transpar¨ºncia, reutiliza??o e intera??o com a sociedade s?o valores defendidos pela ci¨ºncia aberta. Esses valores podem agora ser traduzidos em termos concretos gra?as ¨¤s plataformas e infraestruturas digitais. Essa ¡°reformula??o¡± tamb¨¦m deve ser vista no contexto da evolu??o das nossas sociedades. A ci¨ºncia deve renovar seus v¨ªnculos, tendo em conta fen?menos como a difus?o de not¨ªcias falsas, o aumento do populismo e o agravamento das desigualdades.

Acessibilidade, compartilhamento, transpar¨ºncia, reutiliza??o e intera??o com a sociedade s?o valores defendidos pela ci¨ºncia aberta

Uma nova gera??o

A pandemia tornou poss¨ªvel a divulga??o de outro fen?meno relacionado ¨¤ abertura da ci¨ºncia, anteriormente restrito ao ?mbito acad¨ºmico. Assistimos agora ao surgimento de uma nova gera??o de plataformas baseadas na internet, administradas por comunidades cient¨ªficas que t¨ºm adotado os princ¨ªpios da ci¨ºncia aberta, suas normas e suas boas pr¨¢ticas.

Jovens pesquisadores, que t¨ºm um lugar importante nessas comunidades, testam, inovam e experimentam para reinventar o modelo de comunica??o cient¨ªfica e torn¨¢-lo mais aberto ¨C inclusive para a sociedade, que pode contribuir com o processo por meio de coment¨¢rios. Esses jovens pertencem ¨¤ gera??o que cresceu com a internet e com as tecnologias digitais. Eles n?o t¨ºm medo de abalar um sistema impenetr¨¢vel sem o efeito ¡°abre-te s¨¦samo¡±, que corresponde a ter trabalhos publicados em peri¨®dicos de prest¨ªgio, extremamente seletivos e caros.

Algumas dessas plataformas t¨ºm desempenhado um papel fundamental na dissemina??o de informa??es cient¨ªficas sobre a COVID-19. Os pesquisadores puderam compartilhar seus resultados em tempo real para avan?ar mais rapidamente e de uma maneira mais colaborativa. Essas plataformas baseiam seu valor em caracter¨ªsticas e servi?os avan?ados que dependem de intelig¨ºncia artificial (IA) para o seu desenvolvimento ¨C especialmente para lidar com o fluxo incessante de recursos. Embora n?o ofere?am revis?o por pares no sentido tradicional, elas est?o testando modelos que permitem que uma forma de especializa??o seja atribu¨ªda aos artigos, com base na mobiliza??o colaborativa das comunidades.

Ag¨ºncias privadas de fomento ¨¤ pesquisa ¨C como a Funda??o Bill & Melinda Gates e a Chan Zuckerberg Initiative ¨C t¨ºm se interessado e apoiado esses novos modelos. Esse apoio oferece oportunidades reais de financiamento, mas tamb¨¦m apresenta riscos de recupera??o, ou mesmo de aquisi??o, como vimos no passado.

O interesse pela ci¨ºncia aberta n?o se limita ¨¤ comunidade acad¨ºmica ¨C est¨¢ agora na agenda pol¨ªtica europeia e internacional. Esse movimento vai al¨¦m do acesso aberto ¨¤s publica??es cient¨ªficas. Inclui tamb¨¦m a abertura dos dados de pesquisa ¨C segundo o princ¨ªpio ¡°t?o aberto quanto poss¨ªvel, t?o fechado quanto necess¨¢rio¡± ¨C e a ci¨ºncia cidad? que caracteriza o s¨¦culo XXI. Alguns pa¨ªses t¨ºm come?ado a adotar pol¨ªticas de compartilhamento de conhecimento cient¨ªfico.

 O interesse pela ci¨ºncia aberta est¨¢ agora na agenda pol¨ªtica internacional

Em outra manifesta??o nesse sentido, em novembro de 2021, a UNESCO apresentar¨¢ a seus Estados-membros sua Recomenda??o sobre Ci¨ºncia Aberta (), para facilitar a coopera??o internacional e o acesso universal ao conhecimento cient¨ªfico. Essas recomenda??es abrangem publica??es, dados, softwares e recursos educacionais, assim como a ci¨ºncia cidad?, para enfatizar a import?ncia de se manter a ci¨ºncia nas m?os das comunidades acad¨ºmicas e dos pr¨®prios cidad?os. Ent?o, esses atores poder?o trabalhar juntos para garantir que os objetivos dos avan?os cient¨ªficos sejam definidos sem a l¨®gica e as restri??es da monetiza??o.

Publica??es de acesso aberto

Esse contexto pol¨ªtico nacional e internacional promoveu uma estrutura de pesquisa que pareceria ut¨®pica h¨¢ 20 anos. A quantidade de publica??es de acesso aberto em todo o mundo continua a aumentar ¨C estima-se que, at¨¦ 2030, 75% das publica??es ser?o de acesso aberto. A conscientiza??o sobre o acesso aberto aos dados de pesquisas est¨¢ crescendo, e a compreens?o sobre as quest?es e pr¨¢ticas relevantes est¨¢ aumentando. Novas formas de interc?mbio cient¨ªfico ¨C por meio das redes sociais e v¨ªdeos ¨C est?o sendo improvisadas por iniciativa dos pr¨®prios pesquisadores.

Os principais grupos editoriais cient¨ªficos, que anteriormente eram oponentes declarados da ci¨ºncia aberta, agora se tornaram zelosos defensores da abertura. Para isso, est?o migrando suas plataformas digitais com a finalidade de apoiar a transforma??o em curso.

As negocia??es entre editoras e bibliotecas quanto a taxas de assinatura agora se tornaram negocia??es para ¡°acordos transformativos¡± ¨C com foco nas taxas de publica??o nos peri¨®dicos da editora, ou no n¨²mero de artigos que podem ser publicados pelo mesmo pre?o. Essas quest?es s?o essenciais em um momento em que as universidades buscam melhorar suas classifica??es internacionais ¨C as quais consideram o n¨²mero de publica??es.

As desigualdades que, at¨¦ agora, existiam apenas entre leitores ¨C os que t¨ºm e os que n?o t¨ºm acesso ¨C t¨ºm se transformado em desigualdades entre autores ¨C aqueles que podem custear e publicar em acesso aberto e aqueles que n?o o podem. Estes ¨²ltimos s¨® podem publicar em peri¨®dicos tradicionais, que d?o acesso a seu conte¨²do por meio de assinaturas, o que tamb¨¦m ¨¦ muito caro.

Portanto, a ci¨ºncia aberta est¨¢ sendo desenvolvida no cruzamento de pol¨ªticas cada vez mais internacionalizadas e comunidades mais ativas ¨C cujas iniciativas e pr¨¢ticas est?o sendo rejuvenescidas e organizadas em torno de modelos criados fora dos padr?es pr¨¦-existentes. 

Os novos modelos que t¨ºm surgido tentam escapar dos monop¨®lios do passado. ? em torno dessas quest?es que est¨¢ acontecendo a transforma??o da ci¨ºncia: liberta??o da l¨®gica excludente da monetiza??o; das desigualdades no acesso ao conhecimento; e de novas formas de monop¨®lio agravadas pelas tecnologias digitais. Tudo isso para melhor enfrentar os complexos desafios da sociedade.

Saiba mais sobre a da UNESCO

Leia mais:

, O Correio da UNESCO, jul./set. 2018

, O Correio da UNESCO, abr./jun. 201

, The UNESCO Courier, Oct./Dec. 2011

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